Divórcio

Clarice observava Fernando enquanto ele colocava mais sal na batata que ela havia acabado de fritar. Casados há vinte anos, ele tinha o hábito de corrigir os temperos nos pratos que ela fazia. Mas naquele dia, a receptividade no olhar de Clarice, intrigava Fernando. Na mesa, nada falavam. Ouvia-se o barulho dos talheres batendo nos pratos, a única trilha sonora daquela noite. A TV que Clarice tanto assistia, estava desligada. A sala de jantar iluminada somente pelo tímido abajur no canto da parede. O silencio era constrangedor e denunciava qualquer ruído. Fernando não tinha coragem de iniciar um assunto ou encarar a esposa. 
Ela estava diferente. 
Com o canto dos olhos, percebeu que estava mais arrumada. Não sabia exatamente se havia cortado o cabelo ou tingido. Parecia mais jovem. Ou apenas maquiada?
Seus questionamentos internos foram quebrados pelo barulho do garfo de Clarice, que batia insistentemente no copo, como se chamasse um garçom. Ela levantou a cabeça, corrigiu a postura na cadeira e pôs-se elegantemente a cortar a salada que estava no seu prato. 
Tomate. 
Como ela gostava de tomate! Preferia o do tipo cereja. Picava em pedaços menores, como se fosse alimentar um passarinho, pingava algumas gotas de azeite de oliva e uma borrifada de limão. Dizia que era bom pra saúde.
Fernando observava a esposa de soslaio. Ele, nunca gostou de tomate. Muito menos de azeite de oliva. Como se atrevia a misturar fruta – fazia questão de frisar que tomate é fruta – com azeite? Considerava uma prática anti-humana. Comida de gente era carne, macarrão e batatas, pensava.

Clarice o encarou.
- Quero o divórcio!
Ele arregalou os olhos sem parar de comer.
- Divórcio?
- Estou cansada. O casamento me cansa.   
- Cansada de quê?
- Das suas maneiras.

Desabou.

- Não gosto do jeito que você quebra gelo. Tem as forminhas prontas no congelador. Você anda pra lá e pra cá com essas garrafas PET congeladas e derruba todas as coisas da pia com esses movimentos bruscos e quebra minhas louças.
Não gosto do jeito que você abre o guarda-chuva. Nunca aperta naquela porcaria do botão. Abre direto pelo cabo, vai descosturando o tecido do suporte e fica parecendo um morcego flácido.
Detesto o jeito que você come asa de galinha. O barulho que faz com os dentes, enquanto mastiga e respira ao mesmo tempo. Parece um cachorro doente que eu tinha quando era criança, o Lulu. Você mexe demais a boca e coloca pedaços de carne pra fora sem ainda ter mastigado. Igual dentadura de velha que está prestes a cair. Você não presta! Não quero mais morar com alguém que me lembre o Lulu.

Clarice falava nauseada, mas parecia aliviada. Tirou a aliança do dedo, que resistiu um pouco para sair e colocou na caixinha em cima da estante, pois era organizada.
Levantou, colocou os tomates cereja dentro da bolsa, que já estava cheia de utilitários de sobrevivência e saiu sem olhar para trás.  

Fernando levantou, foi até o espelho. Fitou-se.
Ajeitou a mandíbula e simulou uma mastigação feito o Lulu.
- Amor doido. Amor doído.